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Carta aberta: Por que celebramos?

20-12-2016

A celebração Faces, Cultura e Identidade do Bioma Pampa, realizada em Porto Alegre (RS) no dia 16 de dezembro, marcou o Dia Nacional do Bioma Pampa, comemorado no dia 17 de dezembro, data escolhida em homenagem ao nascimento do ambientalista José Antônio Lutzenberger.

O cacique Kaingang Dorvalino Refej, da aldeia Por Fi Guá, o cacique Guarani Jaime Vherá Guyrá, da aldeia Cantagalo, e o pecuarista familiar Fernando Pires Moraes Aristimunho, que integra a equipe do Projeto Pampa, da FLD, representando povos e comunidades tradicionais, falaram sobre os problemas e desafios no bioma. Também à mesa estava o professor Roberto Verdum, da UFRGS, que apresentou mitos e diversidades do Pampa.

O encerramento ficou a cargo de Mestre Chico e Paula Calero Soares, que trouxeram um pouco da música dos povos afrodescendentes.  

No final do evento, promovido pelo Movimento Gaúcho em Defesa do Meio Ambiente (MoGDeMA), com apoio de inúmeras organizações, entre as quais a FLD, por meio do Projeto Pampa, foi publicada uma Carta Aberta, intitulada Dia do Bioma Pampa: por que celebramos?

Leia na íntegra:

CARTA ABERTA
Evento de Celebração do Bioma Pampa
Porto Alegre/RS, 16 de dezembro de 2016

17 DE DEZEMBRO, DIA DO BIOMA PAMPA: POR QUE CELEBRAMOS?

Em meio a um cenário político de instabilidades e retrocessos, em que pacotaços governamentais, Projetos de Lei (PLs) e Propostas de Emendas Constitucionais (PECs) afrontam direitos conquistados e desafiam nossas capacidades mobilizatórias - enquanto pessoas, grupos, organizações e coletivos - celebrar o Dia do Pampa e da existência dos demais biomas brasileiros é um ato de resistência e de autoafirmação ecológica! 

Mecanismos como a PEC 55 – a “PEC do fim do mundo” –, recentemente aprovada pelo Senado Federal, irá congelar os investimentos em saúde, educação e assistência social por 20 anos. Aqui no RS, o pacote de medidas anunciado pelo governador José Ivo Sartori prevê liquidar com áreas estratégicas do Estado, em especial com a extinção de fundações públicas - incluindo a Fundação Zoobotânica (FZB), referência essencial para a conservação da biodiversidade, em nível estadual e nacional. Paralelamente, o executivo e o legislativo provocam o desmonte da legislação ambiental, em todos os níveis, em favor do avanço e crescimento de setores da economia imediatista e degradadora, em especial representados por grandes empresas concentradoras, pela cadeia oligopolizada do agronegócio das monoculturas e pelo grande setor imobiliário especulador. Estamos diante de uma gravíssima conjuntura marcada pela retomada do vale-tudo neoliberal, encabeçada por um governo ilegal, que promove perdas de direitos históricos e pelo desmantelamento das funções públicas de Estado.

Nesse contexto, celebrar o Pampa e o seu dia nos coloca frente a grandes desafios: 

Mesmo com toda sua riqueza de paisagem, flora, fauna, e modos de vida, o Bioma Pampa, que ocupa um pouco mais do que a metade sul do Rio Grande do Sul (63% da área do Estado), ainda é o menos protegido em relação aos demais biomas brasileiros. No que toca às áreas de Unidades de Conservação, o bioma possui menos de 3,4% da superfície do Estado, lembrando sempre que o Brasil foi um dos países que liderou e ratificou a assinatura das Metas da Biodiversidade 2020, da Convenção da Diversidade Biológica, cujo objetivo seria atingir pelo menos 17% de cada bioma protegido por UCs até o final desta década. Além disso, mais de 60% de sua cobertura original já foi convertida em áreas totalmente descaracterizadas.

O Pampa é um dos biomas que menos possui políticas públicas visando a proteção e a promoção de sua biodiversidade. Nesse sentido, apresenta-se cada vez mais a necessidade de efetivação de medidas voltadas à manutenção dos ecossistemas pampianos além de considerar a necessidade de ampliação de pesquisas no campo da restauração ambiental para os sistemas campestres, que podem ser compatibilizados com a pecuária familiar (bovina, equina, ovina e caprina) como base em produtos, por exemplo, lácteos, lã, couro, meliponicultura, turismo familiar em pequena escala, entre outros. 

Sobre as ameaças ao território do Pampa, avançam cada vez mais os desertos verdes - em especial de eucaliptos e de soja transgênica - com o uso intensivo de agrotóxicos e outros insumos químicos que agridem diretamente a saúde das agricultoras e agricultores e das populações vizinhas a estes plantios, além de comprometer os solos, as águas e o ar. A cada ano, milhares de hectares são convertidos em um cenário de exploração e degradação que afeta agricultoras e agricultores familiares, assentadas e assentados da Reforma Agrária, e  expulsa mulheres e homens do campo, além de povos e comunidades tradicionais de seus territórios. A recente aprovação do PL 145/2016, de forma vergonhosa (em regime de urgência) pela Assembleia Legislativa do RS, que facilita as monoculturas arbóreas no Estado, desconsiderando o Zoneamento Ambiental da Silvicultura – ZAS, beneficia as grandes empresas de exportação de celulose por parte de transnacionais que concentram terras e provocam ainda mais o êxodo rural no estado.

Junto a isso, identifica-se a quase total falta de políticas públicas, a começar pelo fornecimento por parte dos órgãos ambientais dos dados anuais atualizados quanto aos percentuais de remanescentes ou da evolução da conversão dos ecossistemas naturais do Pampa perdidos para áreas com monoculturas e ou com outras atividades (mineração, por exemplo) que rompem com os processos ecológicos do bioma. Da mesma forma, os mecanismos de controle desta conversão são frágeis ou inexistentes. Neste aspecto, não é possível que as atividades degradadoras do bioma continuem não sendo fiscalizadas com rigor. 

Ainda nesse contexto, pauta-se a necessidade de políticas e ações do Estado que garantam a implementação de planos de prevenção, controle e remoção de espécies exóticas invasoras, conforme lista oficial definida pela Portaria SEMA nº 79/2013, situação que, infelizmente, de forma adversa à portaria, já vem sofrendo pressões de setores da silvicultura, em especial de empresas responsáveis pelos grandes plantios de pinus que não têm interesse no controle da invasão biológica decorrente da invasão desta espécie para campos naturais fora de seus empreendimentos. 

A privatização de bens naturais também caminha a passos largos na região. As águas subterrâneas do Aquífero Guarani, que reserva mais de 1,2 milhão de km² de água doce, dos quais 2/3 se encontram em território brasileiro, incluindo o Pampa, um bem público inestimável, está na mira de transnacionais. O Pampa e os Campos Sulinos (aqui incluídos os campos de altitude da Mata Atlântica) são alvo de biopirataria de parte de países de outros continentes, destacando-se o roubo ou patentes sobre as plantas medicinais (cancorosa, marcela, etc.), ornamentais (cactáceas, petúnias e verbenas), forrageiras (gramíneas e leguminosas), frutíferas (butiás, feijoa, araçás, etc.), animais silvestres, entre outros grupos. 

O avanço da mineração em expansão no sul do Brasil é outra grave ameaça ao bioma e a sua sociobiodiversidade, chamando-se a atenção para um dos maiores potenciais comprometimentos da bacia do Rio Camaquã, na Serra do Sudeste. Na região das Guaritas (Distrito de Minas do Camaquã, Caçapava do Sul), nas cabeceiras do rio Camaquã, está previsto um megaempreendimento da Votorantim Metais Holding e IamGold Brasil para a extração de chumbo, cobre e zinco, metais pesados altamente tóxicos. A poluição poderá afetar não só a saúde humana e ambiental como comprometer um dos locais registrados no Mapa das Áreas Prioritárias para a Biodiversidade (Port. MMA n. 9/2007), na categoria de Extrema Importância. 

Tal atividade minerária poderá colocar em risco iminente os modos de vida e os territórios de comunidades tradicionais, como pecuaristas familiares que há várias gerações mantêm a atividade pecuária de forma compatível com a conservação do campo nativo e seus ecossistemas associados, algumas destas famílias que também vivem do turismo rural e ecológico. Esta nova ameaça é real, sendo traduzida pela solicitação de mais de uma centena de concessões de áreas para lavras minerais na região. Como agravante, na pauta atual do Congresso existe uma proposta de enorme retrocesso na legislação (novo Código Minerário) que permitiria, por exemplo, realizar mineração em Unidades de Conservação, Terras Indígenas, Quilombolas e demais Comunidades Tradicionais. 

Todas essas questões afetam diretamente os povos e comunidades tradicionais que vivem no bioma. Estes têm sofrido com a ameaça a seus territórios e modos de vida, que se somam ao desrespeito a seus direitos. Povos indígenas, comunidades quilombolas, pescadoras e pescadores artesanais, povos de matriz africana/povo de terreiro, povo cigano, povo pomerano, benzedeiras e benzedores, e pecuaristas familiares, constituem uma sociodiversidade historicamente invisibilizada. As trajetórias e culturas destes povos mantêm vivos os saberes e a forma respeitosa de relação com o ambiente, passados de uma geração à outra, carregando consigo histórias de luta, resistência, cuidado e respeito aos seus lugares, contribuindo na conservação do bioma.

Assim, celebrar o Pampa, sua sociobiodiversidade, paisagens e culturas são também formas de fortalecer a autoafirmação e a soberania das comunidades locais e as lutas contra os retrocessos que ameaçam patrimônios (cultural e ambiental), modos de vida e processos ecológicos essenciais, sendo estes direitos do povo brasileiro assegurados pela Constituição Federal. 

Propomos, a partir das entidades e grupos de pessoas que apoiam este evento, a construção de uma pauta de lutas conjuntas, com base na retomada da campanha pela Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 05/2009 que inclui os Biomas Pampa, Caatinga e Cerrado como Patrimônios Nacionais no Art. 225 da Constituição Federal, ao mesmo tempo tratando-se de uma necessária moratória à conversão do que resta do bioma (em especial as APBio, 2007), com revisão dos incentivos e financiamentos de atividades insustentáveis neste e nos demais biomas brasileiros, revertendo os recursos para aquelas atividades locais que tenham viabilidade ambiental e sejam construídas de baixo para cima a partir das comunidades, com apoio de movimentos e instituições da sociedade.

Um Grande Viva ao Pampa e à sua sociobiodiversidade!

Assinam esta carta as seguintes organizações:

- MoGDeMA - Movimento Gaúcho em Defesa do Meio Ambiente
- InGá - Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais
- Rede Campos Sulinos
- AGAPAN - Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural
- NEJ-RS - Núcleo de EcoJornalistas 
- EcoAgência de Notícias
- FLD - Fundação Luterana de Diaconia
- Comitê dos Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa
- PIA - Pastoral Indigenista Anglicana
- CIMI Sul - Conselho Indigenista Missionário
- ACESSO - Cidadania e Direitos Humanos
- GVC - Grupo Viveiros Comunitários - Biociências/ UFRGS
- APEDeMA-RS - Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul
- Instituto de Biologia da Universidade Federal de Pelotas
- FEGAM-RS - Federação Gaúcha das Associações de Moradores
- CONAM - Confederação Nacional das Associações de Moradores
- UAMPA - União das Associações de Moradores de Porto Alegre
- CASA DA PARTILHA - Coordenação das Comunidades Eclesiais de Base da Arquidiocese de Porto Alegre
- PET-Biologia UFRGS
- DAIB – Diretório Acadêmico do Instituto de Biociências da UFRG